Nos dias 03 e 05 de agosto, realizamos a discussão da leitura de Chuva negra, romance semidocumental de Masuji Ibuse, publicado inicialmente no Japão em 1965 e com 2 traduções aqui no Brasil: a primeira, realizada por Reinaldo Guarany e publicada pela editora Marco Zero em 1988 e a segunda, realizada por Jefferson José Teixeira e publicada pela editora Estação Liberdade em 2011.
Em ambas as reuniões (no Espaço 308 e no Espaço Novo Mundo), comecei falando um pouco das diferenças das duas publicações:
- Senti que a leitura da edição da Marco Zero foi mais fluida do que a atual, o que atribuo a dois fatores: na edição de 1989 houve o cuidado de se diferenciar graficamente o momento "atual" do romance dos relatos que compõem a maior parte deste, o que facilitou muito a diferenciação dessas situações. A edição atual não diferencia os vários relatos de sobreviventes do bombardeio do momento "atual", o que exige mais atenção ou releitura dos trechos onde há a mudança do foco
- Em segundo lugar, senti a segunda tradução mais estrangeirizadora, o que causou uma fluência menor na leitura. Ou seja, senti que a leitura desta segunda tradução mais "difícil" do que a leitura da primeira. E olhe que sou nikkey, neta de japoneses
A seguir falei da questão documental do romance pois o autor entrevistou vários sobreviventes do borbardeio de Hiroshima e leu vários de seus relatos. O grau de detalhamento das condições dos mortos, feridos e desabrigados não pode ter sido só imaginação do autor. Aliás, quando lemos um pouco a vida dos autores de nossos romances favoritos, percebemos que muito do que lemos é fruto de experiência de vida dos autores.
Consequência da pesquisa do autor foi como ele montou sua obra, mostrando aos leitores 5 relatos diferentes ao longo do romance, a saber:
- Diário de Yasuko em agosto de 1945
- Diário de um sobrevivente (do bombardeio), de Shigematsu Shimizu
- Dieta de Hiroshima em tempos de guerra, de Shigeko Shimizu
- Diário de Hiroshi Iwatake
- Diário da doença de Yasuko
Outra coisa que chama a atenção é que o romance é montado em 2 tempos diferentes, ou seja, o romance começa com Shigematsu tendo dificuldades com sua sobrinha Yasuko, que não consegue se casar, por causa de boatos de que ela esteve na cidade de Hiroshima em 06 de agosto de 1945, de forma que agora estaria contaminada pela radiação. Depois de algumas negociações de casamento fracassadas, Shigematsu decide que uma boa forma de desmentir esses boatos é mostrar para a casamenteira os diários de Yasuko e o dele mesmo, como uma prova documental de que ela não estivera na cidade no dia, então não poderia estar contaminada. Shigematsu trata, então, de transcrever ambos os diários, com tinta, depois que sua esposa Shigeko chama-lhe a atenção para o fato de que documentos escritos a caneta esmaecem com o tempo. O relato de Shigematsu torna-se a espinha dorsal do romance.
Vemos então, a coexistência de dois tempos no romance, a saber:
- O período de 06 a 14 de agosto de 1945, documentados pelos diários de Yasuko e Shigematsu
- O período "atual", descrito no romance como sendo "4 anos e 10 meses" depois do bombardeio, ou seja, junho de 1950 (Matemática é bom para isso, minha gente; confesso, entretanto, que só fiz a conta hoje)
O romance é dividido em 20 capítulos, onde há alternância do tempo, ainda que alguns capítulos inteiros sejam a transcrição do Diário de Shigematsu.
Principalmente porque a recepção do leitor seja de que o romance é documental e, portanto, pretende ser um documento fidedigno dos acontecimentos passados, é muito perturbador perceber a dúvida de Shigematsu e Shigeko se eles devem omitir a parte do diário de Yasuko em que ela foi contaminada pela chuva negra radioativa. Fica a dúvida: seriam eles capazes de fraudar a documentação se eles não tivessem descoberto a doença da sobrinha, cujos sintomas, tão violentos, eram uma prova cabal de que ela fora contaminada?
Ainda que as cenas das consequências do bombardeio descritas no romance sejam extremamente chocantes, uma coisa que nos chamou a atenção é que, independente de todo o horror, as pessoas precisavam continuar com suas vidas, principalmente aquelas que, como Shigematsu, não foram tão atingidas. A despeito de tudo, para os sobreviventes, a vida continua: tanto durante aquele mês de agosto de 1945 quanto depois. Até hoje.
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