terça-feira, 24 de maio de 2011

A raposa e o camponês, versão de Lucia Hiratsuka de um conto tradicional

    Olá!
Li esta versão do motivo folclórico da Esposa Raposa na Revista Recreio e apaixonei-me por ela. Lembro-me de ter lido, há mais de 10 anos, uma outra versão, do Neil Gaiman, uma graphic novel chamada Os caçadores de sonhos.
E um terapeuta japonês junguiano chamado Hayao Kawai escreveu um capítulo a respeito das "Mulheres não humanas" em seu livro A psique japonesa. Referências bibliográficas no final. 
Boa leitura!!
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       Mukashi...
      O amarelo dourado ia avançando aos poucos. E o vento brincava, como uma criança que não se cansa. Era mais um início de outono.
      Uma estrada estreita seguia cheia de curvas e por ela um jovem camponês caminhava, carregando suas compras.
      “Falta muito pouco para chegar a casa.” O rapaz parou debaixo de uma das árvores frondosas, recostou-se e avistou a montanha ao longe. O campo, as árvores, toda a paisagem vibrava de cor, anunciando a nova estação.
       Estava ele descansando da longa caminhada. Ouviu leve ruído. Seria apenas o vento brincando? Não, algo se mexia no meio dos capins altos e secos.
       “Uma raposa!” O jovem admirou o animal de cauda longa e pelos amarelados, quase se confundindo com a vegetação.
       Foi quando uma sombra ameaçadora surgiu de trás da árvore. Era um caçador, que apontava sua arma. O camponês, vendo que o outro estava prestes a atirar, tossiu alto. Num instante o animal fugiu, desaparecendo em meio às touceiras de capim
         -- Idiota! Você tinha que atrapalhar? Esperei horas por esse momento!
         -- Sinto muito...
         -- Como vai me reparar essa perda?
         -- Não tenho dinheiro.
         -- Então, me dê o que tem aí!
       Que jeito senão lhe obedecer? Entregou toda a compra. Mais calmo, o caçador deu-se por satisfeito e foi embora, carregando o saco nas costas.
       “Era a compra do mês”, lamentou-se o rapaz. Mas voltou para casa feliz por ter salvado a vida do animal. Naquele dia, sua refeição foi apenas um cozido de nabo com arroz. Pelo menos isso ele conseguia em sua roça, o que o deixava mais tranquilo.
       E passavam os dias. Da casa para roça, da roça para casa, sem novidades. As árvores iam-se avermelhando, contrastando com o céu sem nuvens.
       Era uma noite como as outras. Enquanto o jovem preparava a comida, ouviu batidas na porta. Foi abrir. E teve uma surpresa: estava parada, em frente à casa, uma moça muito bonita, nunca vista na região.
        -- Eu ia até a cidade, mas escureceu e não tenho onde dormir. Pode me ajudar? – perguntou ela.
        -- É uma casa simples. Caso não se importe...
       E o rapaz, meio sem graça, dividiu com ela seu simples jantar.
       “Como é que uma moça viaja assim sozinha?” Ele observou discretamente o rosto bonito à luz do fogareiro. Para um homem solitário, uma companhia feminina era sempre agradável. O arroz com nabo pareceu-lhe bem mais saboroso.
       Na manhã seguinte, a moça preparou-lhe a refeição. Tudo muito simples, mas delicioso. Assim que terminaram de comer, ela lhe disse:
        -- Na verdade, não tenho para onde ir. Meus pais morreram e pensei em trabalhar na cidade... só que nem sei onde.
       -- Gostaria de ajudá-la, mas sou tão pobre...
       -- Por favor, deixe-me ficar. Posso cuidar da casa, ajudar na roça.
       Tanto insistiu, que ele aceitou. Era uma companhia que lhe agradava.
       Logo se surpreendeu com a disposição dela para o trabalho. Cuidava de todo o serviço da casa e ajudava nas plantações. Também começou a fazer chinelos e chapéus de palha, que o jovem pôde vender na cidade, melhorando em muito a vida deles.
       Veio mais um outono. Para completar a harmonia, nasceu-lhe um filho, menino forte e bonito. Poderia haver felicidade maior? Uma mulher a quem amava e um filho que crescia cada dia mais esperto, alegrando a casa com seu riso e suas travessuras.
       Muitos outonos chegavam e iam, alternando-se as estações. O garoto completou seis anos.
       Um dia, o marido havia saído para a cidade. A mulher ia arrumar a casa e pediu ao filho:
       -- Vá brincar perto da castanheira.
       -- Está bem, mamãe.
       Por algum tempo o menino brincou sozinho, mas sentiu falta de companhia e voltou para chamar a mãe. Concentrada nos afazeres, ela não lhe percebeu a presença. Cantarolava baixinho e varria as folhas secas colhidas pelo vento durante a noite.
       -- Mamãe tem uma cauda! – gritou o menino.
       -- Imediatamente a mulher recolheu a longa cauda de raposa com a qual varria o chão.
       -- Ah, você descobriu... – disse ao filho, tão assustado quanto ela própria. – Agora que você sabe de tudo, eu não posso mais ficar aqui.
       O menino, chorando, tentou segurá-la, mas em vão. O homem voltava nesse instante e viu a mulher transformando-se. Uma raposa? Como aquela que vira há muito tempo.
       Já distante explicou:
       -- Um dia salvou minha vida! Quis agradecer. Agora preciso ir...
       Pai e filho chamaram, imploraram.
       -- Por favor, volte! Fique com a gente, sempre.
       Mas a raposa distanciava-se cada vez mais, olhando para trás de vez em quando. Em silêncio, despedia-se dos amados.
       E sua figura fundiu-se ao amarelado dos capins. Era mais um início de outono.

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1. HIRATSUKA, Lucia. Histórias de Mukashi: contos populares do Japão.  2a. ed. São Paulo, Elementar, 2008. p.7-14

2.GAIMAN, Neil; PELIZZARI, Daniel (trad.) Os caçadores de sonhos.  4a.ed. São Paulo, Conrad do Brasil, 2005. 132p.

3. KAWAI, Hayao; GERHEIM, Gustavo (trad.) A psique japonesa: grandes temas dos contos de fadas japoneses. São Paulo, Paulus, 2007. p.139-162 (Amor e psique)






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